Costumava ler muito. Perdia-me nas páginas dos livros, viajava até sitíos onde nunca fui, era personagem de um conto que nunca tinha ouvido.
Deixei de ler tanto. E sinto falta disso. Falta de poder estar em dois sitíos ao mesmo tempo, falta de ler memórias que não são minhas, de perceber sentimentos que não são os meus, de viver uma vida que não a minha. Ler era um escape. Uma outra forma de perceber o mundo, as coisas, as pessoas. E há um livro especial que me fez perceber tanto, sobre o que somos realmente, o que temos medo de mostrar. Somos humanos, erramos e no fim do dia lamentamos não termos sido mais e melhores. E Nuno lobo Antunes, médico pediatra é capaz de assumir tudo isso. E é capaz de fazer ainda mais. Sem vergonha é capaz de dizer “Sinto muito”.
“Sinto muito”é um livro sobre o sofrimento em geral, sobre a dor, seguida de perda, seguida de dor. Entristece o coração ler este livro. Mas, logo a seguir surge a recompensa: as palavras de um médico que afirma “sentir muito” não ter podido fazer mais, não ter sido capaz de ir mais longe na batalha, não ter sido maior, mais forte, mais vencedor, mas que acima de tudo, não se esquece. Não se esquece, que lutou, lado a lado de pequenos grandes guerreiros. Não esquece as pessoas que têm estado com ele, que têm sido grandes numa batalha tão difícil. E como forma de as homenagear, como forma de fazer lembrar os seus pacientes, escreve-os nas páginas deste livro. Para que toda a gente saiba quem eles foram, para que não seja apenas ele a recorda-los. E saber tudo isto, torna-nos mais leves e melhores, sabedores de que, existe algo de bom no final. Existe este médico que não se esquece. Nuno Lobo Antunes libertou a sua voz nas páginas deste livro, e fez-me ver que afinal a alma também fala.
No prefácio, António Damásio escreve: “Há no médico o desejo de ser santo, de ser maior. Mas na sua memória transporta, como um fardo, olhares, sons, cheiros e tudo o que o lembra de ser menor e imperfeito. Este é um livro de confissões. Uma peregrinação interior em que a bailarina torce o pé, o saltador derruba a barra, o arquitecto se senta debaixo da abóbada, e no fim, ela desaba. O médico e o seu doente são um só, face dupla da mesma moeda. O médico provoca o Criador, não lhe vai na finta, evita o engodo. Mas no cais despede-se, e pede perdão por não ter sido parceiro para tal desafio.” Não somos todos médicos, mas somos todos Humanos. E tal como Nuno Lobo Antunes, também eu transporto olhares, cheiros e sons. Também eu tenho uma memória, também eu sou a junção de todas as pessoas que já passaram na minha vida. Também eu já tive os meus “pacientes”, e tenho marcados em mim, cada traço da face deles. Foram os meus “pacientes”. E eu tentei ser o anjo da guarda deles. Em alguns falhei nessa tarefa. Noutros não fui anjo o suficiente. Mas, mesmo naqueles dias em que estava cansada, com sono, com pouca paciência, quero que saibam que fiz o meu melhor, que me lembro e que não pretendo esquecer-me. E embalada pelas palavras deste médico tão humano, também eu quero dizer que sinto muito por algumas vezes não ter estado à altura. Mas estive sempre lá. Continuo lá. E vou estar sempre lá.
Mais uma vez o escritor, pede que exista um ouvido para ouvir, um coração para partilhar, uma mente que tente compreender. Mais uma vez ele escreve, e confessa-se num novo livro. “Vida em mim”. Neste livro, em processo semelhante, mil vozes se erguem, fantasmas adormecidos despertam, memórias há muito esquecidas retomam brilho e cor, quando o presente e passado se confundem, e uma semana vale uma vida. Olhos que se vêem a si mesmos, e nessa peregrinação interior procuram descobrir o nexo, o sentido de uma existência em que o passado caminha ao lado do presente, numa conversa cúmplice de quem se conhece bem. Deixei de ler tanto. Mas, este livro vou ler de certeza.
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